Exposições / exhibitions
Na exposição Metamorphis , Kelvin Koubik apresenta desenhos de sua última produção. Esta mostra é um desdobramento da exposição Amalgamorphosis (2017 – Lajeado ), onde em uma alusão biológica, não apenas o conceito passa por metamorfose e mutações, mas as próprias obras são revisitadas e alteradas.
METAMORPHIS
Metamorfose e/ou Mutação | Uma carta para o amigo e artista Kelvin Koubik
Existe uma complexidade seletiva nas texturas da natureza que se amarram no conjunto de forma tão simples, quase estratégica. Existe também uma simplicidade inerente à cidade, que se esconde num complicado poema urbano, que nascemos e morremos recitando inconscientemente. O que pulsa em nós, disso tudo, é o recorte.
Escrevo esse breve texto olhando para uma janela, a mais de trezentos quilômetros de Porto Alegre, onde o primeiro prédio se perspectiva fora do alcance do olhar e o ponto de fuga não parece obedecer às ordens da geometria. As plantações, as árvores e os matos se estendem e se alargam no ritmo disperso, numa organização própria. De alguma maneira, o recorte da janela que escrevo e descrevo se faz equilibrado e perfeito quando inscrito nos limites que disponho.
O trabalho do artista Kelvin Koubik me faz pensar nesses conceitos, sem um juízo de antítese, como cidade-natureza, aberto-fechado. Este trabalho me remete a um recorte em movimento, escolhido e manipulado de forma contínua, que se faz presente tanto na urbe quanto na natureza, e ainda assim monta e remonta uma linguagem própria.
Durante mais de um ano acompanhei o trabalho de Kelvin, registrando diversas etapas desta trajetória. Iniciei meu registro pouco tempo depois da concepção dos desenhos iniciais como “a origem” e da série “morfoses”, que registram as experiências, mesmo que em pequena escala, destes recortes em movimento. Na série amalgamorfose, o silêncio e o desenho se confundem. Enxergamos um quadro composto por silêncios e sons desenhados de forma a enaltecer ambos, ainda assim, sem uma antítese aparente, seria impossível reproduzir essa sensação sem a comunicação entre as áreas preenchidas e as áreas em silêncio do desenho, ambas recortadas, uma sobre as outras.
A última parte que essa exposição abrange é composta por trabalhos e retrabalhos mais livres. Esta liberdade foi adquirida e conquistada por meio de um caminho de recortes confinados em um desenho preciso e momentos de performances visuais sem nenhum limite aparente. Essa etapa não é o resultado das anteriores, e sim a metamorfose e/ou mutação dos limites, espaços, silêncios e preenchimentos adquiridos nessa trajetória orgânica de trabalho do artista.
Quando recebi o convite para essa escrita, Kelvin me confessou uma dúvida em relação ao nome dessa etapa. Por vezes pensava em metamorfose e por outras em mutação. A dúvida é justamente o recorte do trabalho, que ao adquirir uma biologia plástica, por vezes entra em metamorfose e por outras em mutação. Esse estágio da trajetória retrata um momento em que o artista compreende a própria criação, e percebe que a aparente antítese, na verdade, era um paradoxo necessário. Que as experiencias de recorte, de mistura, de transposição e composição eram justamente as etapas de amadurecimento de uma criatura instável, que por horas se manifesta em contraste por outras em mistura. Nessa última etapa do trabalho, também é possível visualizar um flerte com as cores, com a fusão de técnicas e a mistura de tempos. Não apenas o conceito passa por metamorfoses e mutações, como também as próprias obras são revisitadas e alteradas.
As duas palavras remetem a mudança, e num léxico desvio da poesia, percebemos que uma das diferenças entre a metamorfose e a mutação é a natureza do acontecimento. Acontece que o significado direto de uma ou outra palavra, por vezes não comporta a complexidade do objeto. Nesse caso, o neologismo metamorphis foi o nome escolhido para a exposição.
Termino essa carta sem uma conclusão elaborada, pois de um todo do recorte que olho da janela em que miro, fiz um metarecorte de um pensamento sobre a obra de Kelvin Koubik. O olhar me escapa tanto em relação a alguns pontos da obra, como em alguns pontos da paisagem. Isso me aproxima e distancia do que elas querem me dizer. Por isso, recortei o que compreendi da trajetória do artista nestas obras e do que compreendi da paisagem. Provavelmente estejamos sempre sujeitos a entrar em metamorfose e/ou mutação dentro dos recortes que nos aproximamos.
Guilhermo Gil | Verão e/ou Outono de 2018
Se retornarmos pela linha da história da arte, encontraremos por lá o traço do desenho. Com ele, o artista apurava o raciocínio e se instrumentalizava para construir tecnicamente sua representação de mundo. O desenho como esboço de delineação das formas externas – como linguagem acompanhante da disciplina da pintura e como projeto para construção de uma imagem observada – foi um recurso amplamente utilizado durante o passar dos séculos. Mas ele se emancipa, se liberta do seu compromisso com o real e adquire sua autonomia. Representar a realidade de maneira fidedigna deixou de ser prioridade no campo da arte. Com a alforria do desenho, o risco desacanha, se funde com o corpo que o rege e implode pelo espaço.
Podemos perceber isso nas obras de Kelvin Koubik. Seu traço livre vira mancha e sua gestualidade torna-se performativa. Por outro lado, se acompanharmos seu processo criativo, perceberemos que a mesma linha que se expandiu e ocupou o papel, aos poucos, cede lugar para a volta do figurativismo. Em suas obras mais recentes, podemos notar o surgimento de estudos de observação de um entorno. Grafismos da flora e da fauna vão aparecendo como se nos remetessem à constante presença da natureza morta no imaginário do artista. Ao alocar esses estudos naturalistas dentro de formas geométricas herméticas e encerradas, Kelvin coreografa essas formas, retém as tramas e texturas com o contorno do desenho e espacializa os elementos como um jogo concretista abstrato. A mímesis voltou. Mas não se trata do mesmo pensamento que reinava no passado, em que a busca pela imagem perfeita era o objetivo primordial. No caso de Kelvin, figura e abstração convivem com igual importância na mesma folha.
Durante o século XX, em especial na segunda metade, as correntes abstracionistas confrontavam a representação figurativa. A expressividade gestual e intuitiva, junto com a racionalidade geométrica participativa das vertentes concretas e construtivistas, movimentos que aparecem no pós-guerra, faziam uma dupla de oposição ao realismo. Nesse confronto de regimentos estéticos, a comunhão entre propostas de naturezas distintas era uma prática incomum. Hoje, isso tem sido revisto. Num amálgama de formas, unindo o diverso e o heterogêneo no mesmo campo de forças, Kelvin Koubik revisita a própria história da arte e, ao invés de negar procedimentos do passado, permite a coexistência entre eles. Assim, o artista nos apresenta uma disposição imagética democrática. Nos relembra que o campo da arte não funciona mais sob a lógica da negação e que o colapso moderno abriu margem para a liberdade contemporânea.
Paola Fabres. Mestre em Artes Visuais na área de História, Teoria e Crítica de Arte. Pesquisadora e curadora independente, ministra cursos na área de crítica de arte e é fundadora e editora da revista Arte ConTexto.
Amalgamorphosis | Palomar Estúdio | 2018
Diagnósticos, para Kelvin Koubik, são desenhos gestuais.
A letra explode seu significado.
A linha mostra o vestígio do estremecimento irrepetível da mão.
Este jovem desenhista, na tradição de grandes artistas
como Leon Ferrari ou Mira Schendel, inventa alfabetos.
Desenha a escrita ou escreve o desenho.
Os ritmos de suas composições
parecem marcados por sua prática como percussionista.
Seu texto se torna abstração,
texturas mais ou menos tensas, densas.
Diagnósticos são, aqui, caligrafias do indecifrável.
Teresa Poester